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3 anos 1 mês

As marcas da pandemia nas nossas crianças

Ao longo deste último ano das nossas vidas, carimbado pelos terríveis efeitos decorrentes da pandemia da COVID-19, muito se tem debatido nos mais diversos meios e locais, sobre as consequências que a propagação à escala global do vírus SARS-CoV-2, determinou para toda a sociedade, nomeadamente ao nível sanitário, económico e social. Desde as questões respeitantes à saúde pública que nunca, como agora, mereceram tão particular atenção e preocupação, à severa crise económica e social que vemos instalada na sociedade, em que assistimos a elevados níveis de perda de emprego e rendimentos das pessoas, até à cambalhota que a vida social de cada um de nós sofreu, com a suspensão de convívios e outras restrições aos nossos direitos e liberdades, não temos dúvidas que a pandemia está a deixar profundas marcas na vida de todos nós.

Na contabilização dos danos causados pela era pandémica que atravessamos, impõe-se olharmos com especial cuidado para os efeitos sócio emocionais que a crise pandémica que nos assola determinou para as crianças. Com efeito, a fadiga provocada à generalidade das pessoas, fruto da experiência dos sucessivos confinamentos e desconfinamentos que nos são impostos, como resultado da evolução da situação epidemiológica do país, tem tido um impacto relevante nas nossas crianças de hoje que serão os jovens e os adultos do amanhã.

Na dolorosa contabilização dos danos sofridos pelas nossas crianças com a pandemia, não podemos incluir apenas aqueles resultantes do agravamento das dificuldades de aprendizagem, do retrocesso na progressão e rendimento escolares, que são, obviamente, merecedores de preocupação e que, inclusive, têm sido objeto de intervenção por parte do Governo e do atual Ministério da Educação, que tem em preparação a criação de um plano ou medidas destinadas a permitirem a recuperação de aprendizagens e a alteração nos processos e instrumentos de avaliação. 

Relativamente ao plano que está a ser elaborado e que será apresentado brevemente, de acordo com as informações que nos vão chegando pela comunicação social, ainda desconhecemos o seu desenho e teremos de aguardar divulgações ulteriores. No que diz respeito às propostas que vão sendo apresentadas e conhecidas, parece-me que a necessidade de uma reorganização ou inovação curricular, assim como mudanças na avaliação só surgiram como mais emergentes após o ensino à distância e também por causa dos resultados obtidos numas provas realizadas a cerca de 23 000 estudantes do nosso país dos 3º,. 6º. e 9 anos. 

Contudo, enquanto professora do 1ºciclo, há 24 anos, sinto que a necessidade desta reorganização, há muito se reclamava e não pode ser justificada e suportada apenas nas respostas atuais à crise pandémica. Há muito trabalho a fazer a este nível. Há que repensar a escola na sua estrutura.

Sob a perspetiva que justifica esta reflexão, cumpre dizer que enquanto docente estou muito preocupada com as questões sócio emocionais das nossas crianças. Durante o período de confinamento que vigorou em 2020 e em que em que mantive um contacto diário com os pais, fui-me apercebendo que as crianças pareciam não sofrer demais com a nova realidade que lhes foi imposta. Era tudo novo e diferente e gerava até alegrias, porque as crianças poderiam, finalmente, estar mais tempo com os pais, podendo recuperar aqueles tempos em família que miúdos e graúdos há muito reclamavam e que o modelo de sociedade que conhecíamos antes da pandemia, com um nível de absorção e compromisso profissionais muito elevados, nem sempre permitia. No entanto, com a habituação ao novo paradigma – aulas à distância – que parecia durar mais tempo do que o previsível e desejado – pude observar que algumas crianças, especialmente aquelas que são filhos únicos, começaram a revelar sinais da falta de socialização: falta de companhia dos seus pares para as brincadeiras e da relação interpesssoal. Isto trouxe-lhe consequentemente: aumento da frequência de estados de aborrecimento, aumento da irritabilidade, momentos de maior ansiedade e tristeza, maior resistência ou dificuldade de cumprimento nas rotinas familiares – cenários já previsíveis e que foram agudizados no confinamento a que fomos sujeitos no início deste ano de 2021 e do qual somos recém-saídos. As famílias tiveram de mudar a sua organização e gestão familiar num curtíssimo espaço de tempo e convenhamos que a juntar a isto, estas alterações comportamentais não foram tarefa fácil para muitos deles. 

Chegados à escola, após o período de confinamento, estas características têm-se tornado evidentes, sobretudo nas crianças mais pequenas. As crianças têm uma ânsia de brincar enorme, mas estão mais agitadas, impacientes, intolerantes, impulsivas, com dificuldade no domínio da empatia e, por vezes, mais agressivas. Os docentes e as assistentes operacionais terão de ter cada vez mais um papel preponderante na resolução destes conflitos que, apesar de ocorrerem em espaços exteriores, “vêm” também para dentro da sala de aula. Urge a necessidade cada vez mais pertinente do papel da Educação para a cidadania e desenvolvimento no domínio da relação interpessoal, onde os psicólogos também assumirão um papel muito importante.  Note-se que estas alterações comportamentais não se generalizam obviamente a todas as crianças, mas são cada vez mais frequentes.

A todos os envolvidos no processo de educação: alunos, pais, famílias, comunidade e profissionais que trabalham nas escolas, surge-nos uma tarefa árdua. Fomos obrigados a reinventar-nos e teremos de aprender a lidar pacientemente e com a lucidez e emoção necessárias, com esta turbulência, por forma a conseguirmos ajudar as nossas crianças a saírem deste momento, o menos beliscadas possível.

Não é só o processo de recuperação das aprendizagens que nos deve mover, enquanto professores. Devemos também colocar na equação o diagnóstico de casos de maiores dificuldades pela criança, na adaptação a esta nova realidade que, infelizmente, pode não ser transitória. A intermitência de aulas presenciais com o ensino à distância pode voltar a repetir-se e teremos de estar habilitados e dotados da capacidade necessária para ajudar as crianças a reaprenderem a conviver de forma saudável, ainda que adaptada ao atual paradigma social, de modo a evitar o risco de complicações emocionais, comportamentais e relacionais, sendo que estas vão influenciar também o seu desenvolvimento cognitivo. As nossas crianças de hoje serão os adultos de amanhã, e enquanto professora do 1.ºciclo sinto-me responsável por contribuir para que os meus alunos sejam crianças capazes de atingirem bons resultados escolares, mas que sejam também, e acima de tudo crianças felizes e saudáveis. É um trabalho permanente, às vezes com alguns espinhos, mas possível e imensamente gratificante!

Susana Alves, professora na Escola Básica de Figueiró – Agrupamento de Escolas D. António Taipa, em Freamunde