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casa das artes
3 anos 1 mês

As prendas do menino Jesus, em Freamunde

NAQUELE TEMPO NAO HAVIA PAI NATAL

A noite estava horrível. Quem se importava com o estado da noite! Naquele tempo não se sabia de antemão como ia estar o tempo. Eram tempos em que a tecnologia só nos tinha dado o Telefone e a Rádio. Ainda recordo o primeiro telefone público na minha terra. Estava afixado na Padaria Mendes. Alguns iam ali efectuar chamadas telefónicas ou recebê-las. Os mais humildes até tinham receio de enfrentar o telefone. E quando ali eram chamados para receber uma chamada mais medo tinham. Sabiam que não iam ser boas notícias. Uma desgraça ou a morte de qualquer familiar que vivia fora da terra. Eram estas notícias que vinham pelo telefone. Se outra fosse era mandada por recado.

O rádio era diferente. Transmitia relatos de futebol e música. Mas também era raro nas casas dos mais pobres. Não era só pelo seu custo. Também era porque a maioria das casas não eram possuidoras de electricidade. Assim só restava ir para um café ou taberna ouvir a rádio. De ouvidos bem atentos ouviam o relato do Benfica do Sporting ou Porto. Música era o que mais dava. Convinha ter o povo distraído com este tipo de emissões. Assim não pensavam na política. Não reclamavam da miséria que lhes ia porta adentro.

A noite continuava horrível. A chuva e a trovoada fazia-se ouvir. Que interessava. Se naquela noite não ia sair de casa. Só pensava nisso porque estava para chegar a casa uma filha que era criada de servir no Porto. A camioneta da carreira já devia estar a chegar. Como precaução mandou o seu filho mais velho esperar a irmã. Mas estava aflito porque a noite estava horrível. Raramente vinha a casa. Mas neste dia que já entrava na noite, vinha.

Vinha três vezes no ano. Pela Páscoa, festas da Vila e Natal. Era o que acontecia nesta noite. A hora do jantar aproximava-se e eles não chegavam. Já não era só pela noite horrível. Era também pelos presentes que tinha pedido a sua filha para comprar no Porto. Não era que não houvesse em Freamunde casas com tais quinquilharias. Haver havia. Mas o dinheiro era tão pouco. Como a sua filha ia receber a mensalidade comprava no Porto. Por que ele só recebia a semanada no sábado, último dia, de trabalho semanal. E como a véspera de Natal tinha calhado numa quarta-feira não havia dinheiro de sobra para esse efeito. E como pai gostava de dar algo aos filhos. Fosse a coisa mais insignificante. Mas que gostava de dar gostava.

No seu tempo de criança era raro receber. Também não tinha um par de sapatos para pôr ao pé da lareira. Tempos horríveis. E a noite continuava horrível. E não havia maneira de chegar. Teria perdido a camioneta! Oxalá que não. Estava entretido neste pensamento e nem deu pela chegada dos dois. Também quem podia ver com uma noite horrível. Não havia luz pública no lugar em que habitava.

Ainda recorda uma noite em que uma sua filha adoeceu e teve que a levar a casa do médico. Ele com a filha ao colo a mulher com um candeeiro a petróleo para os alumiar. Mesmo assim era topada atrás de topada. O que interessava era não deixar cair a menina. Já bastava o estar doente.

Cogitava nisto quando a sua filha chegou junto dele e lhe deu beijo. Estás mais gorda e bonita, disse para sua filha. Mas deixemo-nos destas formalidades porque está na hora de jantar. Está bem mas primeiro vou desfazer a mala, disse a filha. Não quer ver os presentes para os meninos? É melhor não. Eles podem-se aperceber e depois não crêem no menino Jesus. Sim! Naquele tempo não havia Pai Natal. Era o Menino Jesus que trazia as prendas.

 

Por Manuel Pacheco, no Natal de 2021.