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Latim – um modelo de poder na linguagem eclesial

Sérgio Carvalho, digníssimo director deste jornal Religiolook, escreveu um magnífico artigo sobre a importância do latim nos ritos da igreja Católica, por ocasião de uma deliberação do Papa Francisco que regulamenta a chamada “missa tradicional”

Este tema tem motivado muitas polémicas, sobretudo nascidas em França, e prende-se com uma pretensa tendência de sustentar pessoas e organizações afectas a um modelo eclesial renovado pelo concílio Vaticano II que, para espanto nosso, ainda custa a aceitar por fiéis agarrados à sua fé traduzida numa linguagem “sagrada”.

A linguagem que usamos é circunstancial à época em que vivemos, acolhe novos perfumes e expressões para que seja explicável a quem aparece de novo ao mundo da fé – uma experiência religiosa do sagrado. Esta experiência não tem senhores ou donos, competindo à reconhecida autoridade eclesial a tarefa de acolher os sucessivos paradigmas linguísticos que vão sendo assumidos pelo “povo de Deus”.

A insistência num modelo linguístico e de comunicação absolutamente ultrapassado, pode satisfazer os adeptos da memória e da história – e nisso é aceitável – mas coloca uma questão que deve ser apreciada.

Todos os modelos de comunicação reflectem uma estrutura de poder. Isto é, não havendo poder sem linguagem, este é exercido por quem de direito, na linguagem dos tempos.

Não precisamos de ir buscar o exemplo do filho do carpinteiro que em tempos idos entrou no templo e anunciou um novo tempo, e por isso uma nova linguagem, curiosamente compreendida pelos iletrados da época. O exemplo do futuro crucificado – pela opinião pública que não aceitou a sua linguagem – fala por si, ainda hoje.

Verificamos na práxis eclesial dos defensores do rito latino, em pleno século XXI, a defesa de um modelo social com nostalgia por uma linguagem ultrapassada e que sustentou um modelo político estranho aos valores da revolução francesa, à crescente valorização dos direitos humanos – sobretudo na Europa – e à fundamentação do que se convencionou chamar “sociedade aberta” e que abriu caminho para um novo modelo nas relações Igreja-Estado.

Este esforço de renovação da sociedade e da Igreja ficou desenhado no concílio Vaticano II. Por todo o mundo brotaram experiências eclesiais, fruto da actuação do “Espírito Santo” mas debaixo da preocupação dos cardeais vestidos de púrpura nos corredores da Santa Sé.

A igreja quando vista como poder, assume todos os tiques do mesmo e não é diferente das organizações políticas que conhecemos onde reina a gestão dos interesses do momento mas sobretudo se impõe uma verdade conveniente. Perseguindo-se assim aqueles que, abertos à criatividade do Espírito, estão disponíveis para avançar para dentro do templo e questionar os senhores do poder.

Percebemos que a igreja se move no tempo, se adapta às surpresas do mundo e por isso sobrevive apesar da sua diversidade interna (que é a sua verdadeira riqueza patrimonial). Por isso resiste a leituras “eclesiais” que estando fechadas no tempo se restringem a um modelo de comunicação ultrapassado e que não representa mais do que um “modelo de poder” que suporte organizações políticas saudosas de um mundo que acabou.

Penso todos os dias no Papa Francisco. Ele não merecia esta preocupação. Necessita do carinho do povo anónimo, tal como Jesus, depois de sepultado, recebeu como primeira visita a estima de Maria Madalena.

Arnaldo Meireles, jornalista

Imagem – http://senzapagare.blogspot.com/2017/11/cardeal-burke-celebra-missa-pontifical.html