ESTAMOS
À ESPERA
casa das artes
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A rapariga dos olhos azuis, neta do avô Fredemundus

Reparou que aquele objeto, aparentemente inofensivo e inerte, a ofuscava com uma luz intensa, fazendo-a piscar os olhos por não suportar o desconforto. Era como se o sol tivesse ficado cativo no interior daquela coisa e se desmembrasse em pequenos raios para se escapulir sem que o seu captor pudesse impedi-lo.

Aproximou-se. Do sol não restava o mínimo vestígio. Tinha-se eclipsado sem deixar rasto. A medo, tocou a coisa que não conseguia nominar com as pontas dos dedos. Sentiu-lhe a maciez da superfície e as arestas irregulares das margens. Pegou-lhe com delicadeza, aproximou-a vagarosamente do rosto e, tomada pela surpresa das imagens, quase a deixou cair sobre o chão pedregoso.

Naquela posição, via uma roseira coberta de flores e uma abelha a sugar-lhes o precioso pólen. Por mero acaso, enquanto olhava a planta real que se encontrava mesmo a seu lado, alterou a posição em que segurava o objeto, e, ao olhar de novo, não viu abelha nem flores, mas um pássaro muito amarelo a debicar no meio dumas ervas verdes. Arregalou os olhos de espanto, disse:

– É mágico este objeto!

Nos dias seguintes, passou a chamar-lhe espelho mágico, pois em cada momento e em cada sítio por onde passava via refletidas na sua superfície imagens novas, variadas, improváveis e, por vezes, divertidas.

Intrigada com a magia daquela coisa, a menina decidiu explorá-la. Colocou-a verticalmente sobre uma pedra lisa, mais ou menos da sua altura, e acercou-se com cuidado, sem lhe tocar. Um rosto de menina parecia olhá-la com atenção do outro lado, esforçando-se por descobri-la também. Sorriu, e o seu gesto foi correspondido por um sorriso largo estampado no espelho. A tentar entrar no mundo da outra, aproximou o rosto um pouco mais. Uns olhos azuis enormes observavam-na, tão curiosos como os seus. Estranhou.

Naquele tempo havia poucos espelhos e esta menina nunca tinha visto nenhum. O pai explicou-lhe que aquela coisa misteriosa não tinha qualquer magia, era uma espécie de vidro que se limitava a refletir o que lhe passassem na frente, sem nada criar. Que agora ela podia observar-se, comparar-se com as outras meninas da sua idade.

– Então aqueles olhos azuis enormes que eu vi no espelho são os meus?

– Exatamente, minha filha –  confirmou o pai.

– Mas se nem tu nem a minha mãe têm olhos assim, como é isto possível? – interrogou a rapariga, à procura de respostas para as suas imensas dúvidas.

– Sabes – começou o pai por dizer, fazendo uma ligeira pausa. – Tu não o conheceste, mas o pai da tua mãe tinha uns olhos assim. Ele veio duma terra distante onde todas as pessoas tinham os olhos azuis.

– Parece-me que há aí uma história interessante. Conta-ma, por favor – suplicou a pequena, numa voz tão doce quão irresistível.

O pai contou-lhe.

– Há muitos anos, quando os ferozes hunos invadiram o norte e o centro da Europa, muitos povos procuraram outros sítios para viver. No caso dos suevos, como o teu avô materno, resolveram invadir esta parte da Península Ibérica e aqui se fixaram, muitas vezes dominando pela violência os povos que já cá estavam. Era a lei da sobrevivência… A certa altura, quando se encontrava no Porto, já depois de se terem livrado dos visigodos que tinham cercado a cidade, o teu avô conheceu uma rapariga local – a tua avó. Ela era uma rapariga morena, de cabelos muito escuros e um corpo forte, mas equilibrado nas formas. Ele, alto, louro, de olhos azuis. Aparentemente, nada tinham em comum, porém, como é costume dizer-se, os opostos atraem-se. Apaixonaram-se mal se viram.

– E casaram-se logo? – quis saber a menina, tentando antecipar um final feliz para esta história.

– Não foi assim tão fácil… mas já te conto – prometeu o pai, a sossegar a filha.

E continuou.

– O teu avô tinha um dilema para resolver: se, por um lado, sendo guerreiro, não tinha poiso certo nem tempo para constituir uma família, por outro lado, o amor que nutria pela tua avó não lhe permitia ficar muito tempo longe dela. A sua decisão foi rápida, no entanto, atendendo à situação, havia que tomar certas providências.

– Era de dinheiro que precisava?

– Não, não era de bens materiais que se tratava. O problema é que o seu chefe não estava disposto a deixá-lo partir, o que complicava tudo. O teu avô, Fredemundus, era o melhor soldado daquele grupo.

– Coitados! E como resolveram isso?

– Da única forma possível – afirmou o pai da menina, continuando. – Como não obteve autorização do seu chefe, ao abandonar o posto podia ser acusado de traição e condenado à morte. Assim, tinha de fugir de surpresa, para longe, sem que ninguém suspeitasse nem soubesse o seu destino. Foi quando soube da existência duma terra fértil, sem donos nem habitantes. Disseram-lhe que bastaria seguir o sol em direção a nascente. Assim, quando a oportunidade surgiu, pegou na tua avó e aqui se estabeleceu.

Pouco antes de chegarem ao local onde fundariam uma nova família, passaram pela Serra da Agrela. Era quase noite. Por entre uns arbustos que bordejavam o caminho, pareceu-lhes vislumbrar uma figura humana. Com precaução, aproximaram-se. Uma velhinha, de nariz longo e adunco, estava penosamente amarrada a um eucalipto, tendo a boca fechada com um pano que lhe apertava na nuca. Os seus olhos, rúbeos de pavor, imploravam compaixão, auxílio para se libertar. Da sua garganta libertavam-se asfixiados sons guturais, gemendo algo que os recém-chegados não conseguiam decifrar.

Quem teria cometido tamanha brutalidade? Estariam inimigos nos arredores à espera de novas presas? O antigo soldado punha-se em guarda e apurava os sentidos. Depois, como leopardo numa caçada clandestina, avançou veloz em pés silenciosos, armando-se duma espada em vez de cortantes dentes. Nada encontrou. Disse:

– Nada receie, minha senhora. Vou libertá-la agora mesmo.

Primeiro desapertou-lhe o pano que lhe impedia o grito de socorro; de seguida, não conseguindo desatar os nós da corda que a prendiam à árvore, cortou-a com a ponta afiada da espada; e não tardou nada para que começassem a comunicar.

– Obrigada – agradeceu a velhinha a custo. – Salvou-me a vida.

Tinham sido uns meliantes que passaram por ali e resolveram martirizar a pobre coitada. Taparam-lhe imediatamente a boca, sem lhe dar sequer a oportunidade de lhes oferecer algo em troca da sua vida. Tratava-se de animais sem regras, sem fins, sem sentimentos.

Esclarecidas as circunstâncias da patifaria, a velhinha convidou-os a pernoitar no seu modesto casebre. Era uma pequena casa encrustada na saliência de duas rochas, virada a sul, para melhor se abrigar das investidas dos temporais. Um caldeirão enorme ainda fumegava sobre as cinzas duma pedra que se posicionava bem no meio da cozinha com chão de terra. Frascos diversos sobre uma bancada tosca, plantas dependuradas por fios de sisal, entre outros objetos igualmente inomináveis, preenchiam o campo visual dos forasteiros.

– Sou bruxa – declarou.

Encolheram-se um pouco. Poderia transformá-los em bichos? Fazer deles seus escravos para a eternidade?

– Não se intimidem! – pediu. – Nada têm a temer de mim. Pelo contrário…

Sossegaram, e ela continuou:

– Vou cozinhar a poção mais poderosa e fantástica que alguma vez se viu. Este será o meu agradecimento pelo que fizeram por mim.

Reacendeu o lume, foi colocando pós e ervas no caldeirão, mexendo tudo continuamente, enquanto dizia palavras incompreensíveis. A dado momento, elevando a voz numa espécie de oração, retirou o testo da panela e abriu a porta da casa. Lá fora o negrume da noite absorvia todas as formas e todas as cores, nada deixando ver. A cegueira momentânea renovava os medos e trazia os monstros de cada um à superfície. Que iria acontecer? Uma sequência de trovões retiniu seca no vazio. Um raio intensamente luminoso, serpenteou no ar, avançou pelo vão da porta, mergulhou no caldeirão. Ouviram-se explosões, o chão e a casa estremeceram.

Encolhidos a um canto, o jovem casal abraçava-se sem saber que mais fazer para se proteger daqueles inimigos invulgares. Ele fingia-se forte, destemido; ela tremia.

Quando tudo terminou, a senhora dirigiu-se-lhes de novo, oferecendo-lhes o líquido duma enorme colher de pau que enchera no caldeirão:

– Deem as mãos para que o vosso amor se torne inquebrável, e tomem. É a dádiva mais preciosa com que alguém vos poderia brindar. Ao tomarem esta poção mágica garantem a vossa felicidade e de toda a vossa família por muitos anos, pelo menos durante as próximas dez gerações. Bebei, ide e sede felizes.

Beberam. Receosos, mas beberam. Os riscos de não encontrarem a felicidade por não aceitarem a oferenda preocupava-os muito mais do que os perigos que correriam por ingerirem a poção. Tomassem, pois, e logo se comprovariam os efeitos da aventura.

A manhã do dia seguinte foi suficiente para fazerem o percurso até à terra desejada.

“Que felicidade!”, suspiraram ao chegar ao novo lugar.

Mas o seguro morreu de velho e o soldado nunca descura a guarda do seu posto. Assim, nos primeiros dias Fredemundus vagueou pelos cumes dos montes a inspecionar o terreno, a certificar-se de que ninguém os tinha seguido. Depois, mais relaxado e seguro, inspirou profundamente os agradáveis aromas das flores amarelas das giestas e dos matos, e prometeu, prostrado diante da sua jovem companheira:

“Aqui hei de amar-te como nenhum outro homem poderia fazê-lo, e, em conjunto, havemos de constituir a família Fredemundus, que será muito feliz; chamaremos Freamunde a esta terra, que o nome também há de ajudar-nos a fazer dela um local onde a paz, a harmonia e a segurança se sobreporão a tudo o resto, mantendo-nos afastados da ganância dos homens e dos horrores da guerra.

– E foram mesmo felizes? – interrogou a menina, esperançosa numa confirmação do idílio.

– Muito felizes! – afiançou-lhe o pai. – Desse casamento nasceram vários filhos, rapazes, e uma única rapariga, a tua mãe. E, cumprindo-se a promessa da boa bruxa, também nós continuamos a ser muito felizes. Tu és a terceira da geração que fundou este povoado, por isso, de acordo com o prometido, também terás a felicidade garantida. E se dúvidas houvesse, já podemos constatar a sorte imensa de teres herdado os lindos olhos azuis do teu avô. A cor dos teus olhos encerra os mistérios inteiros do céu e reflete as cores camaleónicas do mar. Um dia havemos de os compreender.

– E como é o mar, pai?

– Para teres uma ideia, observa o trigo da nossa seara a ondular num dia de vento. Imagina que o trigo é uma porção enorme de água, a perder de vista. Isso podia ser o mar. – Metaforizou.

– Eu quero ver o mar!

– Um dia levo-te até lá – prometeu.

E levou. Era quase adulta, então.

Na véspera da grande e desejada viagem nem dormiu. Até esse dia, nunca se tinha afastado de Freamunde mais do que algumas léguas, a acompanhar os pais a alguma feira nas redondezas. O resto do mundo surgia-lhe como uma enorme incógnita. Esforçava-se por imaginar o mar, mas, irremediavelmente, as suas divagações conduziam-na para outros mundos. Pouco importava, dentro de umas poucas horas vê-lo-ia de perto.

– Olha, pai! – espantou-se logo que avistou o mar por entre o arvoredo. – Ele é muito maior do que todos os campos de trigo da nossa terra.

A excitação crescia à medida que se aproximavam do objetivo. Finalmente, com a água tão perto que quase conseguia tocar-lhe, descalçou-se e aventurou-se numa caminhada sobre a areia. Extasiada, a menina corria como louca, deixando que as ondas lhe batessem espumosas e frescas nas pernas antes de regressarem submissas ao mar. Olhava para as conchas espalhadas pelo chão e entusiasmava-se a tocar-lhes, a sentir-lhes os tamanhos e as formas, a guardá-las, para as levar consigo como memória feliz. Agitava-se eufórica, chapinhando nas poças de água, brincando na espuma que explodia branca numa pequena rocha junto a si, empapando-se na areia seca onde afundava os pés húmidos do mar.

Um rapaz abeirou-se sem que ela lhe notasse a aproximação. Pegou num objeto artisticamente trabalhado por algum ser enigmático do mar, esticou o braço na sua direção, ofereceu-lho:

– Leva este búzio para recordares este dia para sempre. Quando estiveres em casa, e sentires as saudades a sufocar-te, encosta-o ao ouvido e escutarás o marulhar das ondas, os sons mágicos do fundo do mar.

A menina hesitou um pouco, porém, não encontrando razões que justificassem a recusa, aceitou.

– Obrigada – limitou-se a retribuir, observando-o com um carinho contido, enquanto ele continuava a esgaravatar a areia à procura de algo mais.

Volvidos uns instantes, o rapaz exibiu orgulhoso um novo objeto. Tratava-se duma pequeníssima concha, muito arredondada, de onde se abriam uns lábios irresistíveis a reclamar um beijo. Repetiu o ritual:

– Toma! Guarda-o, para que recordes este dia.

– Que coisa é esta? – quis a menina saber.

– É um Beijinho do mar. Dizem que quem o recebe jamais esquecerá quem lho deu.

O rapaz demonstrava tão elevado conhecimento das coisas do mundo que deixou a menina imediatamente impressionada. Ela pensou: “Que rapaz tão interessante! Acho que ficaria a ouvi-lo uma vida inteira”. Constatou que, ao contrário de si, ele tinha cabelos e olhos escuros como terra dum lameiro. Não que esses pormenores se lhe tivessem afigurado como demasiado importantes, mas porque na diferença encontrava ainda um interesse maior. Então, mais ousada do que aconselhavam os bons costumes da época, perguntou:

– Como te chamas?

– Olavo – respondeu o estranho sem pestanejar.

– É um pouco estranho o teu nome!

– É uma homenagem aos meus antepassados, os suevos.

– Disseste suevos? – questionou a rapariga, intrigada.

– Sim! Porquê o espanto?

– Não me espanto, mas dá-se a coincidência de teres uma origem semelhante à minha.

Riram-se com vontade. Depois foi a vez de ele inquirir:

– Aposto que também tens um nome inusual.

– Chamo-me Orquídea.

– Eu sabia que teria de ser algo assim… uma flor rara e bela! – exclamou Olavo, exibindo um sorriso enigmático a disfarçar a satisfação.

– Não digas isso que me fazes corar de vergonha – redarguiu Orquídea, já com as faces levemente rosadas.

– Não te apoquentes, pois o que disse reflete a mais pura verdade!… Mas, mudando de assunto para que não fiques atrapalhada: onde vives?

– Em Freamunde – respondeu ela ufanosa. – É uma terra pequena mas absolutamente extraordinária, e ainda há de tornar-se uma referência nacional, acredita.

Eles acreditavam-se. Algo os fazia crer cegamente um no outro sem se questionarem. Há coisas que nenhuma ciência ousa sequer explicar, e ainda bem. Naquele momento, a cada um dos dois bastava ouvir o outro, sentir o interesse do outro, estar com o outro. E o outro explicou-lhe como o mar bebia as cores do céu e ficava azul; e como os olhos dela absorviam o céu e o mar, e como transbordavam de água cristalina, de resplandecência estelar, de comprazimento e encanto sem fim; e que nos seus olhos se fundiam todas as cores da natureza e ela se transfigurava numa espécie de deusa, ou ninfa, ou musa, ou a mulher fatal. E ela acreditou.

Muitos sóis se acenderam e apagaram sobre a terra e o mar, muitos sonhos se entristeceram sob os pálidos reflexos da lua, muitos ventos passaram sem darem notícias da pessoa que se queria próxima. Não houvera promessas, nem palavras inflamadas, nem lágrimas visíveis a escorrerem dos olhos na hora da despedida. Porém, o toque leve e fugidio das mãos ao se separarem transmitiu tudo o que havia para dizer.

Um dia, depois de a terra ter contornado várias vezes o sol e de se terem vincado em Orquídea as formas de mulher, reencontraram-se. Foi numa feira, onde as pessoas se juntavam em certas datas para trocarem produtos entre si.

– Orquídea?!

– Olavo?!

Entrelaçaram-se num fortíssimo abraço, esquecidos do mundo.

No seu âmago, na parte mais recôndita de cada um, houve sempre a certeza de que nasceram para ficarem juntos.

Casaram e foram felizes até ao infinito.

 

Joaquim António Leal, escritor residente em Meixomil, Paços de Ferreira.

Título original deste conto: “A rapariga dos olhos azuis”, in “O Rapaz dos Moinhos sem Vento e outros contos”.