Deus colocou na minha vida este homem de eleição, com quem tive a graça de partilhar os corredores do Seminário Maior do Porto: um mestre na arte de perceber e acarinhar a Palavra, um amigo que nos ensina a entender as coisas do tempo, um conselheiro que nos alerta para as surpresas da história.
Este “nosso” homem de Freamunde, entregou a sua vida na ajuda “a todos os miúdos que encontrou fazendo-os crescer nas diversas dimensões da vida”, motivado que esteve e está pela fé que “não perdeu em Roma”, pela abertura ideológica que experimentou, muito antes do 25 de Abril de 1974, pois partilhou e cresceu nas sombras e luzes da epopeia que foi viver o “tempo” do D. António Ferreira Gomes.
Conheci assim D. António depois do seu regresso de Roma para onde fora em 1967, com 24 anos, e experimentou o que é “entrar numa sociedade livre”. Por isso as suas aulas – que eu devorava porque entendia únicas -, dadas por um homem apaixonado, extremamente dedicado e exigente, eram imperdíveis.
A entrada do evangelho de São João foi uma das aulas que me ficou gravada para sempre.
1No princípio existia o Verbo;
o Verbo estava em Deus;
e o Verbo era Deus.
2No princípio Ele estava em Deus.
3Por Ele é que tudo começou a existir;
e sem Ele nada veio à existência.
4Nele é que estava a Vida
de tudo o que veio a existir.
E a Vida era a Luz dos homens.
5A Luz brilhou nas trevas,
mas as trevas não a receberam.
Explicava o professor António Taipa que a interpretação deste trecho seria facilitada se o víssemos com paixão nos olhos e o lêssemos com a abertura intelectual de quem procura o sol na clareira de uma floresta.
E que nesse clareira encontraríamos, talvez a dúvida, mas de certeza o calor da luz. Um exercício para gente que procura o esclarecimento para as suas opções vitais.
Passei a ler assim o evangelho de João como me ensinou o meu professor. Desde aí e até hoje, regresso e volto à leitura de um texto que conheço de cor, e que me coloca no que chamo a experimentação da “comichão de Deus” – mesmo no tempo de esquecimento (as trevas que não receberam a luz), eis que a luz verde reaparece e a história (e o tempo) voltam a fazer sentido, encontrando aí a força e o dinamismo para viver o tempo que Deus me dá.
E assim reconstruo a minha existência, entendida como projecto à medida – desenhado por quem? – e que está sempre aberto a partir das suas próprias possibilidades de ser, realizando-as num fazer (numa ocupação), que a história dos dias nos oferece.
Os ensinamentos do professor Taipa foram e são hoje para mim a pedra angular, e sou o que sou porque tive a sorte e felicidade de o ter encontrado quando estudei teologia numa experiência cultural e espiritual que a diocese do Porto (também minha mãe) me ofereceu.
Em entrevista à agência Ecclesia, D. António referiu. “penso que quer a Igreja, quer a sociedade, têm necessidade grande de homens fiéis a si próprios, fiéis à missão que a sociedade ou a Igreja lhe confia. Homens de verdade, longe das corrupções e do tráfico de influências” (…) “Estou convencido que o que Deus quer de cada um de nós é que viva, viva com verdade” (…) O homem é criado para viver”.
Recordo-me de uma conversa que tivemos sobre este tema quando nos encontramos no pátio do Paço Episcopal, no Porto. Partilhei com ele que estava a trabalhar na Antena 1, e que seguiria profissionalmente o caminho do jornalismo. Ele percebeu que esta era a minha paixão. E assim tem sido.
Algum tempo depois, um amigo comum – Cónego Ferreira dos Santos – referiu-me, para minha surpresa, “se calhar ainda vais trabalhar para a Rádio Renascença”, respondendo eu com um “sei lá” de quem não sabe mesmo.
A informação transformou-se em convite alguns dias depois. E percebi o que D. António referiu na entrevista que citei à Ecclesia: “Passou muita gente pela minha mão, muita gente que se ordenou, muitos que não se ordenaram que estão aí na sociedade, homens fortes, homens vivos, homens dedicados, que dão cartas na vida social, graças a Deus”.
O carinho que D. António tem por quem “lhe passa pela mão” é um acto consequente. Sou testemunha disso – e por isso também agradecido. E foi assim que estando eu na clareira da floresta (laboral) à procura do sol que me indicasse o caminho certo, que entrei na Rádio Renascença onde me fiz como profissional
António refere na mesma entrevista que “tenho 110 padres no exercício do ministério que passaram por mim, fui reitor deles. Graças a Deus. Isso foi muito bom para mim, como bispo”.
Mas – acrescento eu- tem muitos mais homens que lhe estão reconhecidos e dão graças por Deus o ter colocado na história das suas vidas, como exemplo de homem apaixonado pela vida e comprometido com a história de cada um.
UM HOMEM DE FREAMUNDE
O nosso padre António nasceu em Freamunde. Com esta marca percorreu o seu caminho, declarando sempre e sublinhando a pertença à comunidade que o viu nascer e onde deu os primeiros passos na fé pelas palavras de sua mãe: “Ó António, tu não achas que rezas pouco”? – confessou ele à Ecclesia.
E foi em Freamunde que fiquei a saber quem era aquele homem vestido de negro: tinha eu seis anos quando comecei a reparar em determinadas figuras que se destacavam no campo do Carvalhal quando para lá ia com meu saudoso pai ver o nosso SC Freamunde. Muitas vezes, o encontro prévio ao jogo fazia-se no café Teles, primeira mesa à direita, onde se previa a equipa e tática de momento.
No calor do jogo, eu gostava de ouvir os comentários dos “sábios”, destacando (a ordem de preferência é minha) os mimos do saudoso professor Alves – colocado debaixo do carvalho da “bancada central” e onde se encontrava o padre Taipa; e os elogios do meu querido amigo Candeeiro, que não tendo colocação fixa durante o jogo acompanhava o esmo junto à linha lateral, aconselhando o juiz de linha e, quando necessário, o homem de preto que pairava entre os 22 jogadores.
Não havia maestro, mas na sequência dos incidentes do jogo todos sabíamos que num determinado momento chegaria a oportunidade para ouvir a opinião do Professor Alves e do nosso Candeeiro.
Trago comigo o melhor elogio que o senhor Candeeiro proferiu. Sem faltar à verdade, lembrou-lhe que “era tão burro, tão burro que quando nasceu tinha trazido carroça e tudo”…
A nossa gargalhada (pelo menos a minha) sabia quase tão bem como um golo marcado depois da hora. E era nesta multidão de alegria que eu testemunhava o sorriso satisfeito do Padre Taipa que ali estava porque era um dos nossos. (Mais tarde percebi que herdara aquele sorriso do pai Daniel). Ele sorria connosco, num olhar de pertença à sua terra e às pessoas que com ele percorreram o tempo da história. E este olhar permanece ao longo do tempo.
A herança que Freamunde lhe deu, leva-a consigo por onde passa. O sentido da pertença, a alegria de viver, a felicidade partilhada que promove. Também daqui levou a sua fé. Que nesta terra é vivida com a alegria que se manifesta no rebentamento dos foguetes das nossas festas Sebastianas. Com a chuva de fogo que iluminamos o céu, dizemos que esta é a nossa maneira de abraçar o nosso Deus.
UM AGRADECIMENTO
Neste texto/testemunho que aqui deixo, cabe acrescentar que nos meus 62 anos de vida (leve e feliz) me é possível referir as pessoas que me fizeram homem. Há um “top five” que posso partilhar. O meu saudoso pai que me deu a vida e a alegria de a partilhar, o padre Alfredo Soares que me deu mundo e a saber respirar nele, o saudoso padre Eloy Pinho que me ensinou o que sei no jornalismo, o dr Carlos Monjardino que me mostrou o outro lado da coisa, e o Dom António Taipa que me meteu o vício da “comichão de Deus”. Sobretudo a este um agradecimento especial por me ter ajudado a caminhar na fé, podendo assim perceber que a história tem sentido. E que mais é preciso quando tudo faz sentido?
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Arnaldo Meireles
(Texto editado no Jornal de Homenagem a D. António Taipa, pela Associação “Pedaços de Nós”, de Freamunde)