Se dúvidas houvesse, imediatamente ficavam esclarecidas. Nas suas primeiras palavras, começou logo por dizer que é uma freamundense de alma e coração, nascida a 2 de Julho de 1937, no lugar da Vista Alegre. Passados dois anos foi viver para a casa onde ainda hoje reside, no mesmo lugar, onde estará enquanto Deus quiser. É assim que se apresenta Maria José Machado Pereira.
São já muitos os anos em que leva a contemplar Freamunde de uma das suas melhores vistas. É um privilégio ver a nossa terra desde as suas janelas e a sua varanda. Os seus pais, Joaquim Augusto Pereira Gomes e Maria Olímpia da Costa Machado, tinham uma Chapelaria no centro de Freamunde, debaixo da casa do “Nequinha” Oliveira, embora a sua mãe fosse doméstica, como a maioria das mulheres naquele tempo. Há memórias da Chapelaria que nunca se foram embora.
– Era um lugar onde se juntava, vamos dizer, os fidalgos de Freamunde. Juntavam-se ali e sentavam-se num sofá. Eles eram tantos que os assentos estragaram-se e o meu pai obrigou-os a compor. Eles iam para lá para conversar. O meu pai nunca sabia nada, mas sabia sempre de tudo, mas da boca dele não saía nada. Era conhecido por isso.
A menina Mariazinha fez a escola primária nas escolas das meninas, as Escolas Brancas onde hoje é o posto da GNR. Sente saudades da sua professora, a D. Cremilde, que considera que era muito boa naquilo que fazia. A menina Mariazinha não tinha vontade de estudar mais e não fez o exame de admissão após a conclusão da quarta classe.
– Eu tinha uma tia no Porto, que era Professora e quis levar-me para lá e fez-me o exame de admissão ao Liceu Rainha Santa Isabel. Passei lá muitos anos e chorava quando ia, mas depois passava. Quando ía eram umas saudades… Agora vai-se ao Porto e vem-se, mas no meu tempo não era assim. Eu ia e vinha a casa no Natal, na Páscoa e nas férias grandes. Depois do liceu fui para a Escola Normal, na Rua da Alegria, que mais tarde se designaria Magistério Primário. Eu estive primeiro dois anos em casa. Para entrar na Escola Normal era terrível, havia uma seleção muito rigorosa.
Da sua infância, a Mariazinha recorda também a sua catequista, a D. Emilinha, que tocava orgão, no tempo do Padre José Guilherme, e as brincadeiras na rua com os amigos.
– Acho até que as crianças hoje brincam muito menos na rua com os seus amiguinhos.
À direita, é possível facilmente identificar a menina Mariazinha, no dia da sua Comunhão Solene.
Há também algo mais desses tempos de que jamais se esquece:
– Havia uma coisa que agora não há e que eu acho bem. Havia uma diferença entre uma pessoa com posses e uma pessoa sem posses. Se fosse filha da D. Augusta, era uma menina, se folhe filha da “Micas Careca”, era uma rapariga. É uma diferença que agora não há. Naquela altura as Sebastianas eram apelidadas de Festas da Vila, que eram uma festa medonha e era altura de se vestir uma roupa nova, tal como na Páscoa e só os que podiam.
A minha juventude foi passada no Porto, mas eu estava sempre “mortinha” para vir para Freamunde. Por isso é que eu sou uma freamundense de alma e coração. Quem me tira Freamunde tira-me tudo. Eu ía para o Porto na camioneta, quando tinha 13 anos e chorava pelo caminho, por deixar a família e a terra. Quando vinha era uma festa na camioneta. Regressava para a família e para a terra.
Terminada a sua formação, a Professora Mariazinha Machado vem para Freamunde onde trabalhou quase sempre, excepto num curto período em que trabalhou em Ferreira para poder ser Professora efectiva, como Professora agregada não tinha direito a qualquer vencimento nas férias grandes. Abriu concurso para Freamunde e conseguiu o lugar, tendo trabalhado nas Escolas Brancas, na Rua do Comércio e nas Escolas de Santa Cruz, para onde foi aquando da sua inauguração.
Caro leitor, ajude-nos a identificar estes alunos da Professora Mariazinha Machado, provavelmente nos anos 80
A Professor Mariazinha Machado também leccionou na antiga Telescola, que funcionava em edifícios pré-fabricados nas traseiras das Escolas de Santa Cruz
– Tenho mais saudades das Escolas Brancas, na Rua do Comércio… era aquele meio dia… Estava eu e a D. Aldinha, uma em cada sala, chegávamos ao recreio e ficávamos a conversar. Chegava o meio dia e nós ouvíamos as chulipas dos homens da fábrica na estrada.
– Ai, que já é meio dia e nós a conversar, vamos embora.
Depois compensávamos e ficávamos até mais tarde, até trazia os alunos para minha casa, os que tinham mais dificuldades.
Caro leitor, ajude-nos a identificar estes alunos da Professora Mariazinha Machado que começaram a escola primária em 1977
Para quem leccionou tantos anos, entre tantas crianças, certamente que não se lembrará de todos mas haverá alguns que se distinguiram pela positiva.
– Eu gostava muito dos meus alunos e há alguns que nunca esqueço, como o Padre Peixoto, que era tão bom aluno, tão atencioso, que eu gostava dele.
A outra, que agora é médica, é a Anita, filha do Domingos Soares. Era espantosa como aluna e como médica também é. Eu já estive no Hospital de S. João e ela foi a minha salvação, estava sempre a atender-me. Toda a gente que lá entrava a Anita dizia que eu tinha sido a sua professora. A Anita é muito inteligente, é fora de série.
O antigo aluno, hoje Cónego da Sé do Porto, João da Silva Peixoto, com a Professora Mariazinha Machado e a antiga aluna, Dra. Anita Pereira, médica de medicina interna no Hospital de S. João.
– Há uns anos uns alunos fizeram-me um jantar de homenagem. Depois vieram outros e também fizeram essa homenagem. Eu era mazinha, também lhes chegava… era o sistema da época, mas eu tinha que ter bons alunos. Alguns pais até me diziam para eu “cascar” nos filhos quando eles não soubessem.
Ao seu lado, a assistir à conversa, o seu filho Jorge Querido lembra que ela na escola não apartava entre os seus filhos e os seus alunos. Também lhes chegava a “roupa ao pelo”.
Era o sistema de ensino e a cultura daquela época, era o que era. Hoje não seria assim.
O senhor José Querido, o seu marido, era de Penamaior, mas era todo freamundense por causa do futebol. Foi no Campo do Carvalhal que começaram as primeiras trocas de olhares, quando ia ver os jogos do Freamunde com a sua irmã Bertinha.
– O meu marido era um bocadinho vaidoso, era o fidalgo da Casa de Além, tinha um cavalo, era um menino de bem. Foi ele que me conquistou, eu não me ia atirar a ele. Recordo-me bem que tinha 25 anos quando casei, já trabalhava. A minha mãe dizia assim:
– Eu dei-te o curso, tu agora tens que ganhar para o teu enxoval.
Eu tive que ganhar para ter as coisas que eram necessárias. Do nosso casamento nasceram três filhos, não houve abortos, o Paulo, o Gito e a Clara. Mais tarde vieram os netos. Do Paulo, temos o José Pedro e o João. O Gito tem um casal, a Mariana e o Duarte. A Clara é só meninas, a Rafaela, a Carolina e a Margarida.
O casamento de Mariazinha Machado com José Querido pelo Padre Bernardes. O casal na boda do casamento ladeados pela Bertinha Machado, irmã de Mariazinha, e o seu marido “Zeca” Cardoso Leal
A família da Mariazinha Machado tinha uma ligação à fábrica grande, que há poucos meses foi demolida. O último administrador da fábrica Albino de Matos, Pereiras & Barros, Lda., foi o seu irmão, Teodoro Alberto Machado Pereira, a quem os seus irmãos venderam em tempos as suas quotas. A Mariazinha Machado quis manter a sua ligação a esta icónica fábrica até o seu final, nem que fosse dona só de uma telha. Guarda boas memórias da drogaria da fábrica grande, onde trabalhava o Toninho Torres, um homem que era de espantar a rir.
O Jardim Infantil “A Andorinha” foi uma criação de Mariazinha Machado e de Rosalina Oliveira, nos ano 80, e que funcionava numa casa que era do Anselmo Marques, no lugar do Calvário. Quando iam criar uma associação para o legalizar, o Dr. Fernando Vasconcelos sugeriu que o “Andorinha” ficasse ligado à Associação de Socorros Mútuos Freamundense, que precisava de sócios. Hoje é conhecido como o Centro Infanto-Juvenil António Freire Gomes, como um reconhecimento ao apoio financeiro concedido à instituição pela Fundação Irmãos Gomes. Mas a Mariazinha Machado gostava mais do nome “Andorinha” e se fosse hoje, teria criado uma associação própria para o jardim infantil, para o qual tanto trabalhou e doou muito do seu tempo. Após estar reformada, era por lá que passava os seus dias. O trabalho pela comunidade esteve sempre presente na Mariazinha Machado. O ringue, agora demolido, das Escolas de Santa Cruz, onde em tempos se organizava os torneios de futebol de salão, foram uma construção da Associação de Pais de que fez parte e com quem andou a cantar as janeiras nos anos 70, para angariar as verbas necessárias para a sua construção.
Em 1974, é talvez a primeira mulher de Freamunde a ser operada a um cancro da mama, doença muito desconhecida naquela época.
– Eu nunca fui muito aflita, se calhar quem sofreu mais foram os meus filhos. Um dia, quando saí do hospital, a D. Lucília, que era professora do meu Gito, disse para eu nunca ficar mais doente, que não imaginava o que ela tinha passado, foi um dia de choro completo na escola. Quando ia para o hospital deixei o meu Paulo no ciclo em Paços, e quando o deixei ele disse-me adeus e eu vi que ele ia a chorar. Várias mulheres de Freamunde quando tinham cancro da mama vinham ter comigo e eu tirava-lhes o susto.
Vencido o cancro da mama, as mazelas físicas foram continuando, com várias operações, tendo mais recentemente, em 2011, sido retirado um rim para eliminação de mais um cancro. A Mariazinha Machado achava sempre que ia vencer e que se morresse, morria. Talvez esse estado de espírito e atitude a tenham salvo. Foi essa força, que dá vida, que sempre quis transmitir aos idosos que inúmeras vezes visitar ao Centro Social e Paroquial de Freamunde, fazendo companhia, cantando e contando anedotas.
A Mariazinha Machado não destaca nenhum freamundense em particular, alguém por quem tenha uma maior admiração, reconhece antes o nosso colectivo, uma terra de gente boa, gente que sabe receber, mas também de muita coisa má.
Num tom divertido conta como tem vivido a pandemia:
– Eu nem me lembro. Às vezes o meu filho chega aqui com o “barbilho”. Ele tem cuidado, anda sempre com o “barbilho”, mas eu não.
Concorda e percebe que o filho usa o “barbilho” também para proteger os seus pais, que já têm alguma idade. Agora a proteção já é maior, o senhor José Querido e a Mariazinha Machado já estão vacinados.
Os anos vão passando e a saudade vai aumentando sobre alguns dos momentos de que mais gostava em Freamunde.
– O dia 19 de Março para mim era um dia muito especial. Em Freamunde deixou-se cair em tudo, até o 19 de Março. Tocava-se o hino da Associação de Socorros Mútuos Freamundense. Havia uma feira em que os agricultores traziam o gado com os lacinhos. Eu formei um grupo coral com crianças. Havia um teatro que era o “Maria Migalha”, que teve muito sucesso, nunca mais parava, toda a gente queria ver. Não é para me gabar, mas a parte que mais gostavam era a do grupo coral das crianças. Um dia, eu estava tão cansada e não fui. No dia seguinte quase que me matavam:
– Viemos aqui para ouvir a cantar e a senhora não estava. O dia 19 de Março, dia de S. José, já se comemorava e eu tenho memórias desde a minha infância. Era um dia que marcava.
Paulo Querido, o seu filho mais velho, a declamar um poema na festa do 19 de Março, na Associação de Socorros Mútuos Freamundense
Não é esse no entanto o seu único lamento, confessa:
– Estão a fazer as obras, Vamos ver se as obras ficam bem. Gostava de ver Freamunde com mais progresso, porque acho que perdeu muito no comércio. Antigamente, na terra do meu marido, Penamaior, quando se queria uma agulha vinha-se comprar a Freamunde. E agora? Em Freamunde acabou muita coisa. É preciso gente que goste mesmo da terra para a erguer. Aproveito para desejar muitas felicidades aos freamundenses que amam Freamunde.
A Mariazinha Machado sempre teve o gosto de escrever os seus versos, os seus poemas, para guardar para si, como expressões da alma, até que em 1987, participa no livro “Freamunde e o Sentimento Popular”, uma colectânea de autores freamundenses editada pelo jornal Fredemundus. Foi também no jornal Fredemundus que depois foi publicando os seus escritos, muitos deles dedicados a pessoas de quem gosta, como o que escreveu a pedido do seu filho Gito, quando este cumpriu o serviço militar e queria usar nas cantigas das corridas dos Rangers, às enfermeiras que a tratavam no hospital, os “teatrinhos” para as crianças, entre outros, como os que publicava no Espaço Mulher deste jornal.
Lançamento do livro “Freamunde e o Sentimento Popular”. Da esquerda para a direita: António Carneiro, Nuno Gomes, Emília Soutinho, Arménio Pereira, Dr. Fernando Vasconcelos e Mariazinha Machado
E porque há mulheres que ficam na história, a Mariazinha Machado foi a primeira mulher a ser Presidente da Assembleia de Freguesia de Freamunde, eleita pelo PSD, quando o Presidente da Junta de Freguesia de Freamunde era o senhor António Carneiro. Lembra que se dizia muito mal dos comunistas, mas que nunca teve queixa, até pelo contrário, eram muito delicados e sabiam estar no seu lugar, nunca teve queixa, havia respeito democrático.
A Mariazinha Machado confessa que ainda tem sonhos e desejos, o maior sonho é ir para o céu, mas antes tem o desejo de ver os filhos ainda mais velhos, os netos muito felizes a crescer e porque não, ainda assistir ao nascimento e crescimento dos seus bisnetos… freamundenses de alma e coração.
Por Pedro Ribeiro