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casa das artes
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O tio Joaquim, o dinheiro e o fogo das Sebastianas

O tio Joaquim nasceu em Ferreira no ano 47 do século passado e hoje com 75 anos de sabedoria olha para trás e traça a linha do tempo – “meu caro amigo, o dinheiro é como as mulheres, quando a temos não a aturamos, quando não a vemos sentimos a falta dela”!

Depois de uma entrada de conversa com esta finura vi que tinha na minha frente um parceiro de fala, com gosto pela análise “política” e, vai daí, comecei a “puxar por ele”

  • Não me diga, pensa mesmo isso?
  • Então não é? e já reparou que o dinheiro tem duas caras?
  • Isso tem, pois claro
  • Pois é; duas caras, quer dizer não se pode confiar nele, tanto vem como desaparece…
  • Os economistas chamam a isso “inflação”, as coisas ficam mais caras e com o mesmo dinheiro compramos cada vez menos coisas…
  • Sim, sim; mas isso é verdade quando há dinheiro. O meu amigo sabe o que é viver sem dinheiro?
  • Estar “teso” é isso?
  • Não, pior….
  • Pior?
  • Sim, já lhe digo

O tio Joaquim puxa de cigarro, o isqueiro bic está no bolso, e com gesto sereno dispara o fogo e exala a primeira fumaça. Puxa forte e de seguida sai-lhe da boca o prazer e a história que se segue:

.Tinha eu uns vinte anos e casei com a minha Guida. Com vinte escudos no bolso metemo-nos na Pacense, ali junto ao coreto de Freamunde, e fomos ao Porto. Não sabia onde era nem se era longe.

Que coisa linda e grande, um mundo de categoria. Num lugar chamado Trindade, junto à Câmara, havia lá um cinema e vimos um filme – coisa de ricos – pois eu queria ver um filme e a minha mulher também. Ainda me lembro, era o Amor de Perdição.

As cadeiras eram vermelhas da cor dos tapetes. Tinha muitos tapetes, e os vidros, aquilo era obra, até parecia uma igreja, mas não era; lá viam-se filmes.

A seguir metemo-nos nuns eléctricos amarelos – a minha Guida dizia que eu estava tolo e queria tudo, mas era só amor: já que estávamos lá, eu queria ver as coisas; olhe depois de sair do primeiro metemo-nos noutro, muito maior, de dois andares, de cor vermelha.

Viam-se as ruas e as casas do alto, um espectáculo, e depois paramos ali pró lado do Marquês – também me lembro de uma igreja bem bonita lá, tem um pinuco mais alto que outro, ainda me lembro e dentro umas paredes de uma pedra que eu nem conhecia. Agora sei que são de mármore, coisa linda de se ver, sim senhor.

. E ficou no Marquês?

. Não senhor, voltei pra beira da Trindade, ainda me podia perder, mas como nos deu a fome, procurei onde comer – coisa limpa e barata. Então encontrei ali ao lado uma coisa do outro mundo – uma rua muito comprida e inclinada, cheia de lojas: tinha de tudo, olhe, parecia a casa Brito em ponto grande: vendiam ferro, pregos, cimento, tecidos, borracha, café, não faltava nada lá; e lá encontrei um restaurante jeitoso.

Ainda me lembro: a travessa tinha arroz branco (saboroso, carago) e depois puseram uma tigela mais ou menos grande com tripas à moda do Porto. Desta moda nunca ouvira falar, nem eu nem a minha Guida, mas cheirava bem e portanto devia ser bom. Comemos, regalamos a barriga; o vinho não era mau.

Consolados com o que vimos, lá chegou a hora de vir para casa. O homem do bilhete da pacense tinha-nos dito que a camioneta saía pelas seis e meia da tarde para vir para casa. E assim fizemos, voltamos a sair em Freamunde e depois fomos a pé para Ferreira.

. Um dia em cheio, então!

. Pois, a minha Guida gostou, ainda hoje me lembro disso, e ela estáva-me sempre a dizer que naquele tempo gastamos, duma só vez, 20 escudos!

. Ir e vir ao Porto, ir ao cinema, andar de eléctrico e de autocarro, comer para duas pessoas, “pacense” até ao Porto e voltar a Freamunde; tudo num dia, e só 20 escudos? (Dez cêntimos de Euro, hoje)

. Ora lilas, pois é, vinte paus bem gastos, só queria que visse a alegria da minha Guida!

. Então em que ano foi?

. É só fazer as contas, tenho 75, casei com vinte, portanto, deixe ver, foi no casamento, portanto 15 de Agosto de 1967. Aí está, está a ver?

. Oh tio Joaquim, e porque me conta essa história?

. Mas tu não querias saber quanto vale o dinheiro e para que serve? Aí está. Casa agora, pega na mulher, vai, come, faz o que eu fiz; e volta para me contar quanto dinheiro precisaste. E já agora conta-me que contentaste a tua mulher como em fiz no meu tempo…

. O tio Joaquim é danado pra brincadeira, ainda me lembro de si quando andava eu na escola primária e o senhor trabalhava ali na quinta

. Essa é a segunda parte da nossa conversa…

. Segunda?

. Segunda parte, sim, então não te perguntei no princípio se sabias o que era viver sem dinheiro?

. Pois foi, agora me lembro, mas como é isso?

. Olha, era um tempo em que só podíamos confiar no sol. Ele marcava as horas, para começar a trabalhar e para acabar. As horas eram dadas pelo sino do mosteiro e pela chegada da minha mãe Alzira e mais tarde a minha Guida. Quando chegavam ao campo era meio-dia, tempo para procurar a sombra e comer o que havia.

. Certo, mas não me ia falar de dinheiro?

. Já estou a falar! O caldo era feito com as couves e batatas que plantava na horta, o pão era cozido com o milho que semeava no campo, os ovos das galinhas que comiam os restos, a fruta era a que caía das árvores, o mato confortava as vacas que davam leite, o colmo enchia os colchões da dormida, e, pelo São Miguel, ainda “sobrava” para entregar ao padre milho, centeio, o que havia, para pagar a côngrua. Há, já me esquecia, também íamos uma vez a Paços para pagar a décima – mas aí tínhamos de levar moeda.

. E como arranjavam dinheiro?

.Íamos à feira do Cô e à de Freamunde, e aos domingos à capela de santo António: vendíamos hortaliças, vacas, cavalos – o que tínhamos ou nos deixavam ter

. Explique lá melhor, adivinho que vem aí coisa

. Chama-lha coisa! Ai se fosse hoje…. queria-me rir

. Então como era?

. O meu pai, e depois eu, “fazíamos” a quinta de Ferreira, estás a ver? Ela não era nossa, era do patrão que vivia no Porto. E todos os anos vendíamos o que fazíamos. Das vendas entregavamos ao dono a parte dele e ficávamos com a nossa. Depois vendíamos na feira aquilo que não tínhamos ainda comido, o que sobrava.

. Então o dinheiro era pouco!

. Mingava, mas não passávamos fome e deu para criar cinco filhos, agora dez netos, maravilha do céu, só tenho pena da minha Guida não estar cá – que Deus a tenha. Uma doença “ronhe” levou-a”; puta que pariu. É a única coisa que me faz falta, era como o sol.

. Lembro-me dela todos os dias, sabes?

. Acredito, tio Joaquim, mas a vida é assim

. Pois é, que se foda o dinheiro, ajuda mas interessa pouco, desde que tenhamos para comer, siga a rusga

. Temos de andar em frente, tio Joaquim

. Pois claro

. Mas sente-se sozinho?

. Com os meu netos? Na…os  meus cinco filhos deram-me a herança dos netos, os olhos deles são como as laranjas de verão, os beijos deles fazem-me rir, quase que me mijo todo quando me abraçam…. Então tenho uma neta que não te digo nada, refilona, lembra-me a Guida, é a cara dela,  mas quando se senta ao meu colo eu sinto-me no céu.

. Que bom, fico contente, há que viver, com ou sem dinheiro

. Já que voltas a falar de dinheiro, ouve lá que tenho uma dúvida para resolver

. Então?

. Li um anúncio na “Gazeta” onde dizia: “Mulher de Lamoso com terras, procura homem com tractor”. Tinha telefone e tudo e eu liguei. Combinamos falar na festa do Corpo de Deus, em Paços. Bem composta, nada de se deitar fora; é bastante nova, tem 35 anos. Já fumei para aí três cigarros a pensar nela e no que dirá a minha Guida!

. Deixe a vida correr, tio Joaquim

. Não sei, vou ver. Olha, na noite dos foguetes das Sebastianas, vou deixar o fogo aquecer o céu e vou perguntar à minha Guida o que acha. É que não sei se a rapariga das terras quer o meu tractor ou o dinheiro que ganhei com ele…

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Foto Trolei, in – https://etcetaljornal.pt/j/2020/11/troleicarros-no-grande-porto-a-historia-de-um-transporte-comodo-seguro-e-amigo-do-ambiente-que-deixa-saudades-e-espera-por-um-museu-ha-decadas/