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casa das artes
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Quim Bica – memórias recuperadas

Nunca nos foi exigido tanto tempo em casa como nos últimos tempos. De tão pouco tempo que outrora tínhamos, deparámo-nos com coisas a menos para tanto tempo livre. E acho que se há coisa que toda a gente fez, foi mesmo recordar a vida antes disto, valorizando cada pormenor por mais ínfimo que fosse.

Foi por entre conversas e muitas recordações que me foram dadas a conhecer algumas décadas precedentes ao meu nascimento.  E foi assim que me avivaram as memórias de um senhor simples e modesto, mas dono de uma arte incomparável que o mesmo criou. Esse senhor chama-se, “Quim Bica”, irmão da minha avó Sãozinha Bica e, portanto, meu tio avô.

Tenho poucas recordações dele, com muita pena minha. Lembro-me de ser pequena e estar na janela com a minha avó e ele vir do café e me trazer rebuçados. Nada mais. Mas conforme fui crescendo e calhava, falavam-me mais sobre ele e sempre achei admirável toda aquela criatividade e irreverência nas suas obras, mas nunca houve ocasião de uma conversa detalhada, ficava sempre com a visão de espectadora.

Há dias, os meus tios começaram a contar-me mais sobre ele e a complementar a ideia que já tinha. Contaram-me da sua agilidade manual e mental, a capacidade de esculpir tudo o que imaginava, independentemente do material, pois no vasto leque de obras que tem, claramente se vê como um pedaço de madeira ou uma simples folha de papel podem ser muito mais, com um toque criativo. 

De muitas histórias que me contaram, houve uma que me fascinou particularmente. Contaram que numa noite, enquanto percorria as ruas, olhou para o céu e viu “um objeto luminoso a uma velocidade louca”, o que originou novos desenhos e esculturas, intituladas pela conquista do espaço. Pensou também na conquista da Lua e calculou dez anos para esse feito. Surpreendentemente, acertou. Dez anos, sem tirar nem pôr. Extraordinário.

É mesmo um gosto enorme saber de que um talento como este é sangue do meu sangue. E isto deixou-me a pensar quantos “diamantes” como este já passaram por aqui e acabaram por cair no esquecimento. Quantas pessoas, inclusive, não puderam mostrar o que tinham para dar. Hoje em dia temos uma facilidade enorme em dar a conhecer o que quisermos. Mas antigamente… conseguir o que ele conseguiu é mesmo um grande feito. 

A lei natural da vida não permite que ninguém dure para sempre, é facto, mal nascemos é a nossa maior certeza. Muitas pessoas, talentosas ou não, morrem e nascem todos os dias. Mas eu, que estou viva, vou recordar este meu tio, pelo que foi e pelo que continua a ser na boa lembrança de quem, à minha semelhança, não o deixa morrer totalmente. Porque assim como ele esculpiu tanta coisas, também eu vou esculpir a sua imortalidade e puder contar a muitos da arte do “Quim Bica”.     

  

Texto – Rita Silva