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A nossa língua, nossa irmã e nossa mãe – experiência em Timor

Ao aceitar o desafio de escrever o texto que aqui se vê plasmado, cumpre-me considerar que não o faço sob o ponto de vista científico, crítico ou de investigação – pois não possuo quaisquer competências nesses domínios – mas apenas para falar da minha visão que resulta da (pouca) experiência em Timor-Leste, como professor de português no Projeto CAFE, desde março de 2018.

A chegada da língua portuguesa (LP) a terras timorenses ter-se-á verificado de modo muito similar à dos outros países lusófonos, outrora colónias portuguesas. No caso timorense, talvez revestida de algumas particularidades que advinham da distância ao país de origem da língua “colonial”. Como nesses países, em Timor-Leste, a presença do português também resulta da expansão marítima, das trocas comerciais, do processo de missionação de evangelização promovidos pela Igreja Católica e, posteriormente, do domínio colonial e administrativo.

Diga-se, em abono da verdade, que a Igreja sempre assumiu um papel mais ativo na difusão da língua portuguesa do que o próprio Estado, no caso timorense. Pois este sempre se reservou a um papel muito secundário neste domínio. A título de exemplo, sabe- se que a primeira escola oficial de língua portuguesa em Timor-Leste surgiu em 1915. Também, por isso, ao fim de 500 anos de “presença”, nunca a LP se assumiu como língua falada nesta zona oriental. Com efeito, sempre se reservou a um alcance nas elites e na administração.

Nos dias de hoje, mesmo com estatuto de língua oficial, a realidade linguística do português traduz-se em cerca de 5% de falantes, embora num contexto linguístico sui generis que o explica, como veremos à frente.

Apesar disso, a língua portuguesa detém uma função importante e única no contexto timorense, que decorre da sua capacidade de resistir e sobreviver, com a Resistência Timorense, às invasões indonésias, assumindo-se, por isso, como fator de afetividade cultural e democrática.

O período das invasões indonésias foi penoso, violentíssimo e dizimador para este país, mas também para a língua portuguesa. Os vinte e quatro anos de ocupação indonésia trouxeram a Timor-Leste o malaio indonésio imposto como idioma obrigatório como estratégia de domínio cultural, acrescido da proibição do uso da língua portuguesa. Pelo facto de estar conotada com a Resistência, a LP acabou perseguida e proibida, remetendo-se a um papel de clandestinidade na Resistência, ficando-lhe associada e assumindo- se como veículo privilegiado de uso de língua nos documentos, missivas e demais instrumentos de comunicação da Resistência dos guerrilheiros nas montanhas.

Na rua, no mercado, no restaurante, na escola esta “comunhão” linguística prolifera, até num simples ato de fala básico, em que se diz, o “bom dia” em português, se pede a fruta em tétum, se apreça em bahasa, se faz a conta em tétum e se paga em dólares.

Assim convive a LP com as outras línguas e também com as línguas maternas, cerca de vinte no território. O que faz de Timor-Leste um caso particular ao ponto de, com toda a propriedade, ser apelidado de “Babel linguística

Posteriormente à ocupação Indonésia, o português vincou também a sua importância, pois, segundo Tahur Matan Ruak, “era uma das armas para contrapor à língua malaia no âmbito da luta cultural”. Este sentido de consciência e identidade nacional também se pode verificar no facto da LP ser usada, pela FRETILIN, na comunicação em todos os momentos. Ainda que paradoxalmente, a perseguição à LP durante a ocupação Indonésia, terá sido a razão da sua sobrevivência até agora. É este valor afetivo, histórico e cultural que está subjacente ao português em Timor-Leste que o fez, por vontade dos seus líderes, elevar ao estatuto de língua oficial.

Muitas vezes se sente a necessidade de recurso a um guia-intérprete a cada deslocação pelo território! Chegados a Timor-Leste, é neste panorama linguístico que nos vemos mergulhados.

O português não é língua do quotidiano, como já foi dito, esse papel está reservado ao tétum, a outra língua oficial do país. Mas a panóplia de línguas não termina por aqui, pois a par das línguas oficiais, foi definido, constitucionalmente, que o malaio indonésio e o inglês fossem línguas de trabalho na administração pública. E o povo, nas suas relações quotidianas e familiares, recorre às inúmeras línguas e dialetos. Apesar disto, a LP vai sobrevivendo.

Sendo língua oficial, a LP assume outra dimensão que lhe subjaz: o de língua de escolarização e instrução. Com efeito, tal já se verifica, o português é o veículo usado no processo educativo, no acesso ao conhecimento, nos manuais e nas provas de exame nacionais. É por esta via da aprendizagem da língua portuguesa na escola, que o português encontrará caminhos de difusão e de sobrevivência como língua em Timor-Leste. Até ver, não haverá outra via para a LP “ganhar terreno” nesta Babel de Lorosa’e.

No entanto, aquilo que se apresenta como oportunidade também se constitui um desafio, principalmente para nós, agentes da língua portuguesa em Timor-Leste. O ensino do português, por aqui, requer, à partida, ajustamentos constantes ao contexto e às necessidades dos aprendentes, a começar pela diferente abordagem que se impõe, exigindo aos “ensinantes” da LP – como eu – que a reconheçam em Timor-Leste como Língua Não-Materna. Esta é uma condição essencial para a adequar à especificidade timorense e ver algum sucesso na aprendizagem da mesma.

Outra passará por “despir a pele” de professor português de língua portuguesa com a visão e modus operandi ocidental, europeu e luso do ensino-aprendizagem da língua. “Despir a pele” significa mesmo ter a capacidade de não trazer nada nos bolsos! Despojar- se dos materiais preparados para o ensino da língua em Portugal, frequente e inadvertidamente, replicados diretamente de Portugal nas escolas timorenses.

Em suma, ensinar português em Timor-Leste exige de nós conhecimento do terreno que se pisa, adequação de recursos e materiais, perceção da especificidade linguística timorense, de algumas caraterísticas das línguas faladas localmente, muito diferentes na sua estrutura, na ordem das palavras, no uso dos tempos verbais, na ausência dos artigos, no uso da dupla negativa, na resposta a perguntas na negativa, etc. Tudo isto para ir ao encontro das reais necessidades dos aprendentes.

Ao Estado português pede-se que continue a investir no processo de consolidação da língua portuguescomo língua oficial e de escolarização. Embora sejam visíveis sinais positivos, com o processo de cooperação em curso com Timor-Leste, que se configura na implementação de alguns Projetos de promoção da língua portuguesa, como é caso do Projeto CAFE, de que faço e está presente em todos os distritos do país, da parte do Estado português, em parceria com o Estado timorense, espera-se uma disponibilização de mais agentes educativos/professores preparados e formados na língua portuguesa como língua não- materna, com conhecimentos e capacidades referidas anteriormente, e, também, formação adequada dos quadros locais em língua portuguesa, que permitirão o seu ensino e disseminação pelas escolas públicas.

Também será necessária uma decisão da parte do Ministério da Educação Juventude e Desporto de Timor-Leste. A de proceder a uma revisão dos programas de língua portuguesa, principalmente, do 3.º Ciclo e ensino secundário, com uma adequação às necessidades e níveis de proficiência linguística dos aprendentes, invertendo a tendência excessiva que a dimensão gramatical e de funcionamento da língua possuem na abordagem da língua portuguesa como língua de escolarização.

O objetivo do ensino da língua portuguesa em Timor- Leste nunca será de a fazer falada em todos os cantos e atos dos timorenses, mas de os capacitar no uso como língua oficial, de identidade cultural, histórica e com uma marca afetiva que advém da luta comum na resistência. Indo de encontro à vontade dos timorenses, representada pelos seus líderes, como o agora primeiro-ministro, Tahur Matan Ruak:

«Queremos, enfim, afirmar que nunca perdemos a vontade de manter a língua portuguesa, tanto oral como ortograficamente, apesar das várias dificuldades e limitações impostas na redução física dos falantes da língua portuguesa. Sempre com espírito de que a mesma será a nossa língua oficial, logramos conseguir aquilo que para muitos foi um sonho. Com muita razão dizemos: Valeu a pena lutar!»

Mário Meireles, professor em Timor-Leste