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Francisco diante das contradições dos países cristãos

As viagens do papa Francisco – e daqueles que o antecederam – não são escolhidas ao léu. Há planeamento, pesquisa, seleção de convites oficiais recebidos e trâmites diplomáticos. E o estilo de governo do pontífice reinante pesa muito na hora da decisão. Todo papa tem “seu mapa de bolso”, que é elaborado a partir do que ele considera fatores irrenunciáveis dentro do seu programa de governo.

A geopolítica do líder da Igreja Católica atual contempla, principalmente, as periferias – as físicas e as existenciais. Ele vai a lugares nunca antes visitados por um papa. Transita entre territórios devastados pela guerra e conforta aqueles que são perseguidos por causa da religião que professam.

Quando vai a países ricos, pede solidariedade e empatia para com aqueles que pedem abrigo. Não se conforma com a constatação de que a desigualdade social continua a imperar justamente nos países de maioria cristã. Lugares onde os refugiados, cuja maioria é forçada a migrar por causa da miséria extrema e dos conflitos, têm encontrado mais “hostilidade que hospitalidade”, como ele gosta de dizer.

Por causa disso, Francisco sempre leva na bagagem discursos que condenam essas contradições. Quando visitou o Congresso dos Estados Unidos, em 2015, fez questão de tratar de um dos temas mais urgentes da atualidade: a crise dos refugiados.

“Essa realidade nos coloca diante de grandes desafios e muitas duras decisões. Também neste continente, milhares de pessoas são levadas a viajar ao norte em busca de melhores oportunidades. Não é isso que queremos para os nossos filhos? Não devemos nos assustar com o seu número, mas vê-las como pessoas, olhando para seus rostos e escutando suas histórias, tentando responder da melhor forma possível a essas situações. Responder de uma maneira sempre humana, justa e fraterna”, disse.

Naquele dia, ele também se apresentou como um imigrante filho de imigrantes. E aproveitou a ocasião para reforçar que construir pontes é a sua missão. Com isso, ele evocara um dos atributos históricos do próprio papado: o de conciliar, de “ligar”, de ser um pontifex. E quem insiste em tirar do papa a liberdade de focar em tais questões, certamente não compreendeu qual o papel do Vicarius Christi – e, em âmbito político, do soberano do Estado do Vaticano dentro do panorama internacional.

A viagem a Chipre e Grécia, de 2 a 6 de dezembro, é mais uma tentativa de chacoalhar as consciências sobre o drama vivido por quem é forçado a deixar sua terra.

Na Ilha grega de Lesbos, na Grécia, volta a visitar o maior campo de refugiados da Europa. Em Chipre, por sua vez, encontra um país que registra um aumento exponencial do número de migrantes. O pequeno país, que fica localizado na parte oriental do mar mediterrâneo, é visto pelos refugiados como a rota de passagem para se chegar a outros países europeus. Mas quando chegam lá, acabam se deparando com um lugar do qual é quase impossível sair.  Ao norte, o território é controlado pela Turquia; ao sul, está sob a jurisdição da República de Chipre, o único lado reconhecido pela Organização das Nações Unidas, e que faz parte da União Europeia.

Há situações muito concretas que fazem Francisco insistir no tema da imigração: Bielorússia, Líbia e Oriente Médio. E as suas viagens a Chipre (em curso), Líbano e Congo – essas duas últimas, previstas para acontecerem no ano que vem – são uma prova de que ele vai continuar tratando do assunto por um bom tempo.

Após a oração mariana do Ângelus, do último domingo, ele nomeou cada uma dessas realidades:

“Sinto dor diante das notícias da situação em que tantos deles se encontram: dos que morreram no Canal da Mancha; dos que estão nas fronteiras da Bielorússia, muitos dos quais são crianças; dos que se afogam no Mediterrâneo. Tanta dor ao pensar neles. Dos que são repatriados para o Norte da África, capturados por traficantes, que os transformam em escravos: vendem as mulheres, torturam os homens… Dos que, também nesta semana, tentaram atravessar o Mediterrâneo em busca de uma terra de bem-estar e encontraram aí, ao invés, uma sepultura”, reforçou.

Estamos diante da maior crise migratória desde a Segunda Guerra Mundial. E o pontífice não pode, simplesmente, fechar os olhos para essa condição.

A viagem para Chipre promete. Antes de o papa viajar, havia rumores de que ele viabilizaria, mais uma vez, a entrada de migrantes na Itália. Embora o Vaticano não tenha confirmado a informação, o governo de Chipre garantiu que a negociação para a realização dessa transferência estava em curso.

Quando fez isso pela primeira vez na Grécia, em 2016, Francisco conseguiu trazer 12 pessoas para Roma. Cinco anos depois, essas famílias que tiveram boleia no avião do pontífice, agradecem a Francisco  a oportunidade de reconstruir a vida por aqui. Todos eles foram assistidos pelo corredor humanitário liderado pela comunidade Sant’Egidio, da Igreja Católica, em parceria com outras denominações cristãs.

E é sempre bom recordar que o primeiro compromisso público do papa argentino, após a sua eleição como 266° sucessor de Pedro, foi à Ilha de Lampedusa, a cidade que fica localizada no sul da Itália e é o principal ponto de desembarque de migrantes que atravessam o mar mediterrâneo em busca de melhores condições de vida. A maioria vem da Líbia,  onde ocorre do tráfico de pessoas à exploração sexual de mulheres e crianças nos centros de detenção para os quais essas pessoas voltam quando são barradas em alto-mar.

Existe um modo melhor de a Europa fazer jus à suas raízes cristãs que tornando-se um modelo de solidariedade para o mundo? Acredito que não, já que essa é justamente, regra-base do cristianismo.

 

Mirticeli Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total.


In – https://domtotal.com/noticia/1553665/2021/12/francisco-diante-das-contradicoes-dos-paises-cristaos/

Foto – AFP. (Louisa GOULIAMAKI/AFP)