ESTAMOS
À ESPERA
casa das artes
3 anos 1 mês

Saúde Pública em 2021

Para quem acreditou num virar de página imediato, as notícias destes primeiros dias do ano foram certamente bastante desanimadoras. O avolumar de casos de COVID-19, o esgotamento iminente da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS), a necessidade de um novo confinamento e as consequências económicas e sociais que daí advirão fazem esmocerer a esperança que todos alimentávamos com enorme entusiasmo desde há alguns meses a esta parte. Ficou evidente, logo à partida, que os problemas de 2020 não nos irão abandonar tão cedo e provavelmente exigirão de nós um esforço tão grande ou maior que aquele que já tivemos de dispender. Mas será incorreto abandonarmos já a esperança que floresceu no íntimo de todos nós!

No que diz respeito à pandemia de COVID-19, vislumbra-se no horizonte de um futuro próximo a perspectiva de uma imunidade de grupo animadora, produzida pelas vacinas recentemente introduzidas no mercado ou em adiantada fase de aprovação. É certo que ainda persistem algumas dúvidas relativamente à duração da imunização produzida por estas vacinas mas os resultados dos ensaios clínicos que conduziram à aprovação de cada uma delas são inquestionavelmente animadores no que toca à eficácia. E este é, para todos os efeitos, um dos pontos altos de 2020. Nunca, em tão pouco tempo, se conseguiu desenvolver um conjunto tão alargado de vacinaspotencialmente eficazes para o controlo de uma doença completamente nova! Estamos, por isso, a vivenciar uma enorme e inegável vitória para a ciência, que se perpetuará em todos os livros de história como um dos maiores acontecimentos do século XXI.

Por outro lado, as vacinas e os eventuais tratamentos para a COVID-19 que surjam nos próximos meses confirmarão, uma vez mais, que vivemos num período histórico extremamente desigual. Ainda estamos longe, muito longe, de atingir um equilíbrio aceitável no nível de desenvolvimento e na qualidade de vida de todos os povos que co-habitam neste planeta.

Serão os mais pobres e os trabalhadores mais precários a pagar a fatura mais pesada. Essa fatura já começou a ser cobrada com despedimentos coletivos, com um aumento brutal do desemprego e, consequentemente, da pobreza e da instabilidade social. Infelizmente, vivemos num país pobre, cada vez mais sozinho na cauda da Europa, sem grandes condições para suportar o rombo provocado por um evento inesperado que assusta os mercados financeiros e desestabiliza o mercado de trabalho. Dependemos da ajuda externa de uma Europa surpreendentemente (e positivamente) solidária. A quem couber decidir a distribuição e aplicação dos fundos europeus exigir-se-á um enorme sentido de responsabilidade e uma visão estratégica equilibrada e disruptiva! Só desse modo conseguiremos aproveitar esta oportunidade para progredir no sentido do reequilíbrio económico, ao mesmo tempo que se lançam sólidas bases para o crescimento do país.

Nos pontos prioritários desse plano de recuperação nacional deverá constar, em especial posição e consideração, a reestruturação do Serviço Nacional de Saúde. A pandemia de COVID-19 expôs, sem apelo nem agravo, as enormes fragilidades de um sistema de saúde deficitário, que vive há largos anos em subfinanciamento e que depende essencialmente do esforço e da bom vontade dos seus profissionais para continuar a perseguir os objetivos que conduziram à sua fundação. Hoje em dia, o SNS já não promove a igualdade no acesso à saúde porque já não tem capacidade de chegar a todos os portugueses a tempo de lhes prestar os cuidados de saúde de maior qualidade. O alerta vinha sendo reforçado, há já alguns anos, pelos profissionais da área da saúde nas mais variadas formas de protesto e de manifestação, mas tornou-se agora plenamente evidente. O excesso de mortalidade não explicado pela COVID-19 e o enorme atraso nas cirurgias, consultas e outras atividades programadas são exemplos concretos da falência do sistema atual. Urge reformulá-lo, sendo necessário um maior investimento, mas sobretudo uma reestruturação administrativa, tornando-o mais eficiente, mais acessível e mais promotor da igualdade e da excelência. Juntar os prestadores privados de saúde aos prestadores públicos num sistema integrado de assistência médica que promova a partilha de competências mas sobretudo de resposabilidades poderá constituir o caminho certo a seguir. É necessário encetar um debate sério sobre este tema que se preocupe exclusivamente com a melhoria dos cuidados de saúde no que toca à universalidade e equidade que devem promover. 2021 usufrui de condições excepcionais para iniciar e estimular este debate!

Nos próximos meses: contenção, responsabilidade e respeito pela nossa saúde e dos demais. Serão estes os ingredientes iniciais de um 2021 que se quer melhor que 2020.

Rui Filipe Gomes, Médico